Direito à IVG<br>na ordem do dia da luta

Regina Marques

O PSD/​CDS-PP ne­garam às mu­lheres o di­reito de es­colha e opção, au­to­de­ter­mi­nação, von­tade e de­cisão sobre uma ma­téria da maior in­di­vi­du­a­li­dade como é a in­ter­rupção vo­lun­tária da gra­videz (IVG). Em sur­dina sub­ver­teram a lei. Em final de le­gis­la­tura, para que o eco fosse menor. Porém, não nos passou des­per­ce­bido, porque traduz um pro­fundo re­tro­cesso so­cial e po­lí­tico.

O MDM e ou­tras or­ga­ni­za­ções de­nun­ci­aram a tempo o que se es­condia por de­trás de uma ini­ci­a­tiva de ci­da­dãos in­ti­tu­lada «A lei de apoio à ma­ter­ni­dade e pa­ter­ni­dade – do di­reito a nascer», como um aten­tado à dig­ni­dade das mu­lheres e um re­po­si­tório de pro­postas aten­ta­tó­rias da in­te­li­gência das mu­lheres e do di­reito na­ci­onal e in­ter­na­ci­onal nesta ma­téria.

Em dois meses, a luta travou-se em va­rias frentes e com grande sen­tido de opor­tu­ni­dade. O MDM es­teve nas ruas por todo o País, es­teve nos jor­nais e nas te­le­vi­sões, in­for­mando, es­cla­re­cendo e de­nun­ci­ando os pe­rigos que se anun­ci­avam se tal le­gis­lação fosse apro­vada. Tudo se fez para de­mover os grupos par­la­men­tares do PSD e CDS da al­te­ração de uma lei sus­ten­tada por mais de dois mi­lhões de por­tu­gueses, em re­fe­rendo, que tem com­pro­va­da­mente e ofi­ci­al­mente uma ava­li­ação po­si­tiva. O MDM e ou­tras as­so­ci­a­ções foram con­vi­dadas para uma au­dição pela 1.ª Co­missão – Di­reitos, Li­ber­dades e Ga­ran­tias, no dia 14 de Julho. Es­ti­veram nessa au­dição, para além do MDM, ou­tras en­ti­dades que lidam di­a­ri­a­mente com a pro­ble­má­tica nos hos­pi­tais. Ou­tras en­vi­aram pa­re­ceres con­ver­gentes. Uma grande una­ni­mi­dade nos vin­cu­lava no re­co­nhe­ci­mento de que qual­quer al­te­ração da lei atual não se jus­ti­fi­cava e seria uma fe­rida aberta para o fu­turo. Di­ri­gentes e ade­rentes do MDM, sin­di­ca­listas, co­mu­nistas es­ti­veram nas ga­le­rias, na ex­pec­ta­tiva de que im­pe­rasse o bom senso. O que ou­vimos fez-nos re­cuar no tempo e a in­dig­nação crescer. Como é pos­sível a una­ni­mi­dade dos par­tidos da mai­oria? Como é pos­sível as mu­lheres da­queles par­tidos terem vo­tado contra si pró­prias. Na ver­dade, não basta ser «mu­lher» para estar do mesmo lado, em coisas tão con­cretas da vida de uma mu­lher.

O PSD e CDS-PP fi­zeram tábua rasa das opi­niões e só­lida ar­gu­men­tação apre­sen­tadas em sede de au­dição na 1.ª Co­missão – Di­reitos, Li­ber­dades e Ga­ran­tias, pelas vá­rias en­ti­dades. Pre­fe­riram pac­tuar com a Ini­ci­a­tiva de Ci­da­dãos.

O que foi apro­vado, acabou, como tí­nhamos anun­ciado, por mu­tilar e des­vir­tuar uma lei que pro­tege e de­fende os di­reitos se­xuais e re­pro­du­tivos, os di­reitos das mu­lheres e tem con­tri­buindo para a di­mi­nuição das mortes ma­ternas, para a re­dução do aten­di­mento de mu­lheres no SNS re­sul­tantes de com­pli­ca­ções abor­tivas, para a di­mi­nuição pro­gres­siva do nú­mero de IVG no nosso País. Uma lei que per­mitiu um grande avanço no pla­ne­a­mento fa­mi­liar e no uso da con­tra­cepção. De acordo com os Re­la­tó­rios da DGS também a taxa de rein­ci­dência é re­si­dual. Con­tra­ri­ando a ideia de que as mu­lheres «abusam da IVG», os dados mos­tram que entre as mu­lheres que efec­tu­aram uma IVG em 2013, 72,2 por cento nunca tinha re­a­li­zado uma in­ter­rupção. Fê-lo, por­tanto, pela pri­meira vez. Mesmo assim, não dei­xamos de ma­ni­festar pre­o­cu­pação quanto ao in­cum­pri­mento dos di­reitos se­xuais e re­pro­du­tivos em muitos ser­viços pú­blicos, mor­mente no in­te­rior do País, com o en­cer­ra­mento de uni­dades de saúde e ma­ter­ni­dades. Esse é o outro lado da nossa luta pela uni­ver­sa­li­dade do SNS.

O que foi apro­vado pela mai­oria na AR no dia 22 de Julho é, sem dú­vida, uma le­gis­lação em des­favor da ca­pa­ci­dade de au­to­de­ter­mi­nação e de­cisão das mu­lheres, logo mi­ni­mi­za­dora dos seus di­reitos.

Há as­pectos muito gra­vosos desta lei do PSD/​CDS-PP que im­porta co­nhecer mais em de­talhe, mas por ora apon­temos al­guns. O caso do acon­se­lha­mento obri­ga­tório por psi­có­logo e/​ou as­sis­tente so­cial, no pe­ríodo de re­flexão, des­con­si­de­rando a von­tade e de­cisão da mu­lher. Há sub­ti­lezas na le­gis­lação do PSD/​CDS-PP que não têm vindo a lume, até porque não eram claras mesmo no mo­mento da sua vo­tação, como com­pro­va­da­mente as pa­la­vras do de­pu­tado An­tónio Fi­lipe, de­nun­ci­aram. Note-se que a in­for­mação a prestar às grá­vidas sobre as con­di­ções de apoio, passa a ser alar­gada às IPSS e tem em vista não a ajuda à IVG mas «a pros­se­cução da gra­videz e à ma­ter­ni­dade». Por outro lado, sa­bendo-se que, em geral, as IPSS não são pres­ta­doras de cui­dados de saúde se­xual e re­pro­du­tiva, adi­vinha-se que não terão as con­di­ções para acom­pa­nhar casos de IVG a não ser que seja para a «cen­sura», mis­ti­fi­cação ou «evan­ge­li­zação». Os ob­jec­tores de cons­ci­ência, que não pra­ticam o acto da IVG, porque assim o en­tendem, passam a poder in­tervir junto das grá­vidas no acon­se­lha­mento. Passam a não ser obri­gados a re­gistar essa opção, que dizem ser do seu foro re­ser­vado e pes­soal. Desta ma­neira, po­derão prestar com o maior à-von­tade in­for­mação não isenta. Trata-se de um pro­ce­di­mento grave e des­res­pei­toso do di­reito à in­for­mação da utente/​grá­vida, que co­lide, gros­sei­ra­mente, com o di­reito do do­ente con­sa­grado no Có­digo De­on­to­ló­gico dos Mé­dicos re­la­tivo ao es­ta­tuto da ob­jecção de cons­ci­ência.

Ou­tros as­pectos pouco co­nhe­cidos têm a ver com a clara in­ten­ci­o­na­li­dade moral e re­li­giosa, com os apoios so­ciais a prestar sob forma de ajudas mo­ne­tá­rias ou em es­pécie, re­me­tendo-nos para o tempo em que se fa­ziam en­xo­vais nas es­colas para dar às po­bre­zi­nhas. Um dos as­pectos in­tro­du­zidos tem a ver com taxa mo­de­ra­dora na IVG, se for por opção da mu­lher, que, para além de se as­se­me­lhar a um cas­tigo à mu­lher que de­cide optar, es­ta­be­lece uma dis­cri­mi­na­ções entre grá­vidas, o que no en­tender do MDM e de ou­tras or­ga­ni­za­ções é in­cons­ti­tu­ci­onal. A apli­cação de uma taxa mo­de­ra­dora será em nossa opi­nião mais um obs­tá­culo para uma mu­lher que pre­tenda in­ter­romper uma gra­videz, sendo in­génuo pensar que a saída, se não houver di­nheiro no curto prazo para ul­timar os pro­ce­di­mentos ora pro­postos, não vai ser a do aborto pra­ti­cado em si­tu­ação pre­cária e de in­sa­lu­bri­dade, como nos ve­lhos tempos. Re­for­çamos a ideia de que o di­reito da mu­lher à IVG, no quadro dos di­reitos se­xuais e re­pro­du­tivos, em con­di­ções de se­gu­rança e saúde, cor­res­pon­dendo ao seu de­sejo e con­sen­ti­mento, é uma questão de saúde pú­blica e de de­fesa da sua dig­ni­dade, e é uma questão de di­reitos es­sen­ciais e fun­da­men­tais. Olhando trans­ver­sal­mente o ar­ti­cu­lado da lei do PSD/​CDS vemos que os di­reitos da mu­lher à au­to­de­ter­mi­nação são tor­pe­de­ados. Temos a noção de que não apro­varam tudo o que que­riam. Não foram ca­pazes de ir mais longe porque um clamor se le­vantou, tal era a obs­ce­ni­dade de al­gumas das suas pro­postas. Mas não des­can­semos! Os men­tores destas con­cep­ções estão bem al­can­do­rados. Acabar com os di­reitos das mu­lheres na­quilo que é fun­da­mental para a sua dig­ni­dade é um ob­jec­tivo da di­reita, visam re­tro­ceder aqui como em muitas ou­tras es­feras da vida.

Cabe-nos con­ti­nuar esta luta, e alargá-la, no campo ide­o­ló­gico pelo res­peito pelo di­reito das mu­lheres à de­cisão e no ter­reno prá­tico exi­gindo os cui­dados de saúde se­xual e re­pro­du­tiva e desde logo o di­reito ao mé­dico de fa­mília em todo o ter­ri­tório na­ci­onal.

O PCP de­clarou pela voz do de­pu­tado An­tónio Fi­lipe que esta lei de­verá ser re­vo­gada logo que a com­po­sição na AR seja al­te­rada. Vamos a isso. A po­lí­tica pa­trió­tica e de es­querda é a única con­se­quente para ga­rantir os di­reitos da IVG em toda sua di­mensão so­cial e hu­mana.

 



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